sábado, 25 de janeiro de 2014

20 de Janeiro: Discurso do Comandante Pedro Pires


No Encalço de Amílcar Cabral

Sabemos também que, no plano político, por mais bela e atraente que seja a realidade dos outros, só poderemos transformar verdadeiramente a nossa realidade com base no seu conhecimento concreto e nos nossos esforços e sacrifícios próprios.

«A comemoração de uma data, tão carregada de significado histórico e político como o dia 20 de Janeiro, não é uma tarefa simples. A primeira advertência consiste em evitar os caminhos repisados e estafados e a repetição de lugares-comuns. Esta preocupação alerta para o facto de que é preciso precaver-se para que as repetidas celebrações não banalizem este marco histórico, reduzindo-o a um mero ritual, destituído de qualquer significado.

No meio disso, emerge uma dúvida que teima em me apoquentar. É esta: terá sentido a celebração da morte? Evidentemente, não é nosso propósito celebrar a morte resultante de um ato vil de traição, ao serviço do inimigo colonial. Igualmente, não desejamos celebrar a enorme tragédia que foi o assassinato do líder do PAIGC. Estamos a celebrar, sim, a dimensão histórica do homem que, mesmo quarenta e um anos após o seu desaparecimento, nos vem impressionando pela sua clarividência, lucidez e exemplo, cujo legado político, moral e cultural devemos salvaguardar e nele buscar inspiração para a construção de soluções para os grandes desafios com que nos confrontamos, com que a África se confronta e, ousaria mesmo dizer, com que a humanidade se confronta.

A morte é o fim da vida terrena. Sobre isto creio que não há dúvidas. Entretanto, sem depreciar as amarguras da morte, os sofrimentos e as tragédias humanas, impõe-se-nos extrair, destes, lições positivas e negativas, como costumava dizer Amílcar Cabral, em defesa e prosseguimento do combate emancipador que, ainda hoje, compete-nos levar avante em prol da liberdade, da dignidade, da equidade, do bem-estar e do progresso do nosso país.

A “ética cabralista” reclama de todos nós sinceridade, lealdade, comprometimento, generosidade e otimismo. Aliás, o nosso compromisso com Amílcar Cabral deve, sobretudo, ser de índole moral. Retomo uma conclusão sua, a propósito do exercício da liderança política, em que afirmara: “No âmbito geral do movimento de libertação, especialmente nas condições como as nossas, o comportamento moral do combatente, em particular dos dirigentes, é um fator primordial que pode influenciar significativamente o êxito ou o fracasso do movimento.” E sublinhou, a seguir: “Em qualquer outro empreendimento humano, o homem (a sua mentalidade e o seu comportamento) é o elemento essencial e determinante.”

Em relação à dimensão humana dos seus “companheiros de luta”, não se inibia em apontar os seus erros e limitações, de que se pode apreender uma postura fundada no realismo, na verdade e na sinceridade. A forma como encarava os erros era essencialmente pedagógica: dos erros devem ser tiradas lições; da correção dos erros, melhorar as nossas capacidades; com as lições extraídas fortalecemos a nossa personalidade e ganhamos em autoconfiança. Com efeito, dos erros, descobrimos os caminhos mais acertados para prosseguir a defesa e a promoção da causa que abraçamos. Em síntese, a análise crítica é uma componente imprescindível do exercício da liderança.

Por esta e outras razões, não se deve exagerar no temor pelos erros, nem escamoteá-los, pois, o seu reconhecimento e assunção representam uma predisposição de coerência e de honestidade intelectual e um ponto de partida primário para a aprendizagem, na medida em que a aquisição do conhecimento começa precisamente “quando, humildemente, reconhecemos e assumimos o que não sabemos”, a nossa ignorância. Para cimentar esta ideia recorro ao pensamento do ilustre pedagogo da “educação como prática da liberdade”, o professor brasileiro Paulo Freire.

Na perspetiva de Paulo Freire, “Não existe o ‘ser’, mas sim o ‘está sendo’”. Segundo ele, “todos somos incompletos, já que precisamos uns dos outros; inconclusos, já que estamos em transformação; e inacabados, ou seja, imperfeitos.” Assim sendo, impõe-se-nos reconhecer a necessidade do nosso progressivo aperfeiçoamento moral e intelectual, apropriando-se da condição de “homens aprendentes”. Está subjacente a ideia do “aprender sempre”.

Em síntese, é no homem, na pessoa, que é preciso centrar toda atenção. É este homem cabo-verdiano, é este homem africano, que é preciso conhecer, apreender a sua dimensão humana, enfim, descobrir as suas aptidões e fraquezas. Para liderar eficazmente e estabelecer estratégias eficientes é essencial conhecer melhor a dimensão dos homens e das mulheres com que lidamos, até, para descobrirmos em quê é que é preciso mudar ou aperfeiçoar.

Com efeito, para avançar com maior segurança e ultrapassar os obstáculos e bloqueios da caminhada, o conhecimento mais aprofundado da sociedade, em que se intervém, da sua idiossincrasia, é essencial para o exercício de uma liderança eficaz e o estabelecimento de objetivos e metas exequíveis na realização das aspirações ao progresso, à prosperidade e ao bem-estar.

No nosso caso, seria pertinente descobrir os fantasmas, os dilemas e os medos que povoam os nossos espíritos; as fraquezas, alienações e defeitos que condicionam ou obstaculizam a nossa marcha. Naturalmente, teríamos que, antes de tudo, valorizar e potenciar os nossos importantes recursos morais e intelectuais, que são afinal o suporte para enfrentar com sucesso as batalhas, que somos chamados a levar avante.

Numa perspectiva de convergência de propósitos, podíamos interrogar-nos sobre as consequências decorrentes dos atrasos e bloqueios provocados por hesitação e por receio em correr riscos. À atitude de hesitação contraponho o espírito de Cabral. Basta reparar no destemor e na ousadia com que afirmou, audazmente, perante a prestigiada audiência da III Conferência dos Povos Africanos (Cairo, 1961), que a “crise africana longe de ser uma crise de crescimento é uma crise de conhecimento”. Significou um repto arriscado lançado a líderes, analistas e decisores africanos, da época. Das minhas andanças e relações em vários países africanos, fiquei convencido de que esta asserção continua de enorme atualidade.

Na mesma ocasião, fustigou a falta de iniciativa, a hesitação e a improvisação da solidariedade africana com as lutas de libertação nacional, para rematar depois que várias das experiências se mostravam, tanto carentes de um projeto político sólido, como desgarradas da realidade concreta. Aliás, tratava-se de dois princípios que lhe eram muito caros: a fundamentação do projeto de libertação nacional e o realismo político na sua execução.

Ainda, nesta linha de pensamento, destacaria outro ensinamento e advertência que constituem legado seu: podemos e devemos aprender com a experiência dos outros, mas não devemos, ingénua e acriticamente, copiá-los. O mesmo espírito crítico deve acompanhar-nos em toda ação política que realizamos ou conduzimos. Podemos e devemos aprender com Cabral. Porém, não devemos cair na insensatez de querer copiá-lo ou imitá-lo. Poderemos, porventura, “recriar” o seu pensamento, para os tempos presentes.

Vejamos algumas das utopias que, espiritualmente, o inspiraram e também me têm alentado e inspirado a sonhar e a agir. Para Amílcar Cabral, o homem colonizado e oprimido liberta-se sobretudo pela ação, individual e coletiva, e realiza-se através da luta de libertação nacional. Constrói, por este meio, a sua humanidade, a sua condição de pessoa livre e, enfim, a sua condição de fazedor de história, mas, onde não existe separação entre a liberdade e a responsabilidade, pois, uma coisa transporta consigo a outra. Em suma, a libertação tem que ser uma obra coletiva, fecundada no seio comunidade nacional e por ela construída.Esta mesma tese pode ser transposta, à letra, para o cenário atual do desenvolvimento institucional, económico, social e cultural, em curso no nosso país.

A materialização do ideal da libertação deve ser entendida como um processo complexo e de longa duração, envolvendo diversas variáveis, nos campos da política, da economia, das finanças, do conhecimento, da tecnologia, da gestão e do conhecimento, no geral, e é sempre obra de várias gerações. Em síntese, deve ser um projeto nacional, fecundado e assumido pela comunidade nacional. Pressupõe a criação de mais riquezas, a acumulação de meios materiais para a sua sustentação e a capacitação de recursos humanos para a equacionar e assegurar a sua realização.
Difere de qualquer projeto para a sobrevivência. É uma opção política para a construção de uma visão que permitirá, a prazo, a autonomia política, económica, cultural e social ou seja o desenvolvimento integral e sustentável. E o seu primeiro corolário, porque fruto da experiência histórica da colonização e da sua antítese, é concisamente: não se pode entregar o nosso destino em mãos de terceiros. Enquanto uma interpelação permanente, fica o dever patriótico de assegurar a independência e o futuro progressista da Nação.

Mudando de espaço temporal para o presente, a minha percepção é que a nossa sociedade, enfim, o nosso país atravessa uma conjuntura de ansiedade e de relativo desassossego. Trata-se, com efeito, de uma questão do Pão e da sua distribuição. E a pergunta decorrente é: como poderemos multiplicar os nossos pães? Certamente, será através da descoberta de recursos potenciais que podem ainda estar encobertos e não são aproveitados; na correção dos nossos erros e omissões; na superação das nossas insuficiências; na confiança e valorização das capacidades nacionais de inovação e de criatividade.

Entre as muitas insuficiências nossas, encontra-se o conhecimento deficiente da nossa própria terra, da nossa própria realidade. O seu primeiro corolário é a necessidade de um esforço geral das lideranças e dos atores políticos e sociais para sua redescoberta desejada e consciente. Outrossim, para a superação das desvantagens da fragmentação e da dispersão territorial, somos convocados a resistir às tentações “insularistas” e a abraçar o país, por inteiro. Na verdade, é preciso abraçar Cabo Verde, por inteiro!
Ao analisar a comunicação entre os atores políticos e sociais nacionais, apercebe-se de que os diálogos têm sido abundantes. Pelos vistos, têm-se revelado insuficientes ou ineficientes, creio porque lhes têm faltado uma boa dose de sinceridade. Este facto, por si só, apela o retorno aos valores elementares da sinceridade, da lealdade e da responsabilidade partilhada.

Numa outra perspectiva, não é benéfico nem eficiente entender que reside no Outro a fonte dos nossos embaraços. É preferível descobrir as causas verdadeiras dos bloqueios, atrasos e dificuldades, porquanto, os sucessos e os reveses são sempre compartilhados e têm repercussões, boas ou más, em todo o corpo territorial. Deste modo, a responsabilidade pelo presente e pelo futuro da nossa terra exige ser olhada numa perspectiva coletiva e cooperativa. Neste sentido, a facilitação dos nossos êxitos requer a assunção e a prática de boas regras na convivência nacional: a cooperação entre os atores institucionais e sociais; a convergência de esforços; a complementaridade dos projetos e dos interesses; a subsidiariedade entre os espaços territoriais; e, finalmente, a solidariedade nacional. Como uma nota subsidiária, interrogo-me até que ponto não se devia dar mais atenção à prática do planeamento estratégico em que haveria um quadro integrador do desenvolvimento, assumido nacionalmente, e que permitiria concomitantemente vencer os inconvenientes da navegação à vista.

É, ainda, crucial a redescoberta das boas práticas na gestão e no exercício da direção, em que desatacaria: a eficiência e a poupança no uso dos meios disponíveis; a boa escolha das prioridades; o espírito de criatividade e de inovação e, por fim, a aposta no reforço da capacitação dos recursos humanos. Ademais, somos convocados a libertar-nos do pressuposto de que as coisas são resolvidas sempre pela via da cooperação internacional. Em contrapartida, compete-nos procurar e encontrar alternativas endógenas, através do melhor aproveitamento dos recursos internos, da criação de mais riquezas, da poupança dos recursos e da eficácia no seu uso. Neste caso, vale a pena buscar inspiração na nossa história, recente e longínqua: somos um povo de resistentes e de heróis anónimos. É deste modo que temos sobrevivido e vencido.

Outro princípio salutar é estar atento e refletir sobre o que tem sido o percurso do Cabo Verde: onde estamos e como estamos? Não resta dúvida de que o país fez um percurso notável, que deve continuar a inspirar-nos confiança. Porém, as fragilidades económicas e a limitação de recursos internos, ainda prevalecentes, recomendam-nos uma atitude de prudência e de precaução e a fazer uma gestão muito rigorosa da coisa pública. É manifesto que o nosso campo de absorção de derrapagens e de crises é extremamente limitado, ou seja, as nossas margens de manobra são muito estreitas. São estes parâmetros que devem balizar a nossa atuação e o nosso pensamento. Nestes termos, as nossas expectativas individuais e coletivas não devem exceder àquilo que as riquezas criadas e os meios financeiros libertados pela economia nacional nos possam facultar.

Outrossim, a economia cabo-verdiana está inserida numa economia mundial globalizante, da qual sofremos os efeitos, quer das suas vantagens, quer das suas desvantagens. Hoje, são os efeitos penalizantes da conjuntura atual de crise, particularmente na EU, que representam o lado penalizador das desvantagens, enquanto, os recursos provindos da cooperação e do comércio e do turismo representam a componente vantagens. Compete-nos consolidar os fatores favoráveis e atenuar ou eliminar as desfavoráveis. É neste quadro que ganham importância a qualidade e a pertinência das políticas públicas e das actividades privadas no sentido da criação de mais riquezas e do aproveitamento das vantagens competitivas.

Num outro campo de atuação, é hoje opinião fundamentada, entre os estudiosos, de que da representatividade, da qualidade e da eficácia, noutras palavras, das capacidades reais das instituições estatais dependem, em grande medida, o sucesso dos projetos políticos propostos e assumidos pelos agentes políticos ao serviço das respetivas Nações, bem como, a garantia da segurança, da estabilidade, do bem-estar e do progresso. Com efeito, a solidez e a eficácia das instituições constituem os esteios que sustentam o sucesso de qualquer projeto em construção.

No caso cabo-verdiano, sou da opinião de que as nossas instituições estatais reúnem os requisitos essenciais para sustentar, com sucesso, a continuação da edificação do nosso projeto comum ou dos nossos projetos de sociedade. Porém, há indícios da necessidade de melhorias e de aperfeiçoamentos, quer das estruturas orgânicas, quer na qualidade dos agentes e das lideranças. É obra para os agentes políticos ganhar a consciência dessa necessidade e propor programas de reformas consequentes e pertinentes que contribuam para a eliminação de falhas funcionais, de multiplicações e de sobreposições de funções e que proporcionem ganhos em produção e em poupança de recursos.

Em jeito de conclusão, estimo que se impõe repensar a forma como fazemos ou temos feito a política: avaliar as nossas práticas e fazer uma apreciação crítica lúcida das nossas experiências. E, a partir daí, tirar lições e reelaborar atitudes, práticas e metodologias na perspetiva da ética política cabralista.

Na minha visão, a sociedade cabo-verdiana está perante um dilema cuja superação vai exigir dela o rompimento com determinados hábitos e práticas. Haverá-que escolher entre manter a rotina, a indiferença e o tudo-na-mesma, por um lado, ou a interiorização e a apropriação de novos preceitos e práticas responsabilizadoras, por outro. Entendo que seria indispensável o rompimento com as propensões à alimentação de relações de dependência clientelar e o apoderamento de práxis emancipadoras que associassem a democracia à maior democratização social; a mais participação cívica e a maior responsabilização individual e coletiva.

DEMOCRACIA PARTICIPATIVA, PARTICIPAÇÃO CÍVICA E RESPONSABILIDADE PARTILHADA seriam eixos primários do funcionamento desse Estado de Direito (cabo-verdiano), forte e capaz.

Por outras palavras, os espaços públicos não devem ser apenas espaços para afirmação de necessidades e de direitos. Para o nosso bem, têm que ser igualmente espaços de afirmação de deveres e de responsabilidades.

Senhor Presidente da Câmara Municipal,
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Estimadas amigas e caros Amigos,

São algumas reflexões que me pareceram pertinentes para o momento, procurando afastar os riscos de banalização a que me referi no início.

Muito obrigado!

Mindelo, 20 de Janeiro de 2014